Capítulo proferido por D. Armand Veilleux, OCSO, na Abadia de Notre Dame de Scourmont, Forges, Bélgica, a 14 de março de 1999.
Recentemente, falando das origens do monaquismo cristão, fazia alusão a todo interesse renovado, nos meios acadêmicos, pelo ascetismo, e mencionava o grande número de obras publicadas sobre o tema nos últimos vinte anos. Verifica-se também um interesse muito grande pela mística.
No caso da mística, como no do ascetismo, os estudos contemporâneos estudam o conceito de um modo muito amplo que ultrapassa com freqüência o âmbito da mística cristã. Estuda-se a mística como fenômeno humano, do qual a mística cristã é uma expressão. Isto não é sem importância, e não pode ser ignorado pelos cristãos, aí compreendendo-se tanto os teólogos quanto os monges. Com efeito, muitas das questões levantadas pelos pesquisadores modernos- nem sempre cristãos - são questões que a tradição da mística cristã teve sempre de fazer face. Como para a ascese, estes estudos e estas discussões nos obrigam ao menos a rever com novos olhos a tradição da mística cristã. Assim, damo-nos conta de que, com uma clareza nova, entre os grandes espirituais da tradição cristã, houve posições por vezes radicalmente opostas face à natureza da experiência mística, e que seria ingênuo adotar uma em lugar de outras, como sendo a visão "cristã" das coisas.
Entre os estudos recentes, pode-se assinalar a publicação de uma história monumental da mística ocidental pelo Professor Bernard McGinn de Chicago, que está no seu terceiro volume de um total de cinco ( o título em inglês fala de "Western Christian Mysticism" - a palavra inglesa "mysticism" deve ser traduzida por "mística"). Um estudo semelhante foi publicado em alemão por Kurt Ruh (Geshichte der abendländische Mystik, 1990-1996).
Tradicionalmente distinguem-se os místicos apofáticos dos místicos catafáticos (ou das trevas e da luz). Conhece-se também o debate apologético da mística cristã oposta à mística "natural". Nos estudos atuais, distinguem-se mais duas grandes aproximações, uma chamada "construtivista", e a outra, "perenialista".
A primeira considera toda experiência (religiosa, artística ou mística) como o produto de uma cultura, cultura esta que é formada e "construída" pelos conceitos, tradições, dados da fé que formam a cultura da pessoa que vive esta experiência. Assim, a experiência mística cristã é percebida como enraizada na fé e "construída" por todo o dado objetivo do dogma cristão e da cultura cristã.
Ao contrário, na visão dita "perenialista", considera-se que há uma distinção essencial entre a experiência e sua interpretação. A experiência mística é um contato direto e imediato com o absoluto (Deus). Quando ao dado cultural (aí incluído o ensinamento da fé), este só intervém sobre a expressão e a interpretação de tal experiência. Não é fácil de dizer se uma das abordagens é mais cristã do que a outra, mas em todo caso, esta distinção pode nos ajudar a compreender o que se passou no curso dos séculos e como se chegou ao fato de que a teologia se dissociou da mística, e esta da teologia. Isto poderá nos colocar também em alerta contra certas orientações atuais que se inspiram numa pós-modernidade mal definida.
De todo modo, no Cristianismo, a experiência jamais é vivida como uma experiência pura ou absoluta, mas sempre como a experiência de Um outro com o qual o sujeito entra em comunhão. E esta experiência é especificamente cristã no que ela é de experiência de uma Realidade que nos foi revelada pelo Verbo de Deus Encarnado, e que nos foi transmitida por palavras e categorias humanas. Este encontro tem repercussões sobre a dimensão sensível e afetiva de nosso ser. Ela é amor, mas amor da Pessoa conhecida.
O professor Andrew Louth, num estudo já antigo (1981) sobre as origens da tradição mística cristã, depois de ter traçado a evolução desta mística sob a influência de Platão, Filon, Plotino e Orígenes, oferece um capítulo à primeira vista surpreendente sobre o caráter anti-místico pronunciado do monaquismo egípcio primitivo. Que quer ele dizer?
Não nega ele que os monges buscavam uma vida de relação profunda com Deus (o que chamaríamos de "contemplativa"). Mas insiste ele que eles buscavam esta relação não por uma saída de si próprios e de suas atividades cotidianas, mas ao contrário, justamente através delas.
Na vida de Antão narrada por Atanásio, vê-se como Antão, após um longo período de solidão absoluta e de luta contra os demônios, sai de seu reduto em plena forma física, psíquica e espiritual. Está radiante, "natural", diz Atanásio. Quer ele dizer com isto que sua transformação no Cristo não o faz sair de si próprio mas o torna sempre mais perfeitamente conforme à sua "natureza", tal como saiu das mãos do Criador.
Evágrio, o grande teólogo da oração, retomando a teologia de Orígenes, mas enriquecendo-a à luz da experiência monástica vivida, vê bem o objetivo da vida mística como a suprema atividade do Espírito, que conhece seu Criador, mas rejeita toda compreensão da união mística como um "êxtase". No cume da experiência mística, o espírito não sai de si mesmo, mas se realiza plenamente como espírito, na sua atividade mais perfeita, a contemplação de Deus.
Toda separação da teologia e da mística é oposta à natureza do Cristianismo. Esta divisão se deu na Idade Média, quando se instalou um fosso entre a mente e o coração. Pode-se ser induzido a pensar , como se faz muito- que os escolásticos tenham sido mais responsáveis do que os monges pela criação deste fosso. O fato é que este fosso está criado. Tanto quanto esta mística do coração tenha permanecido o canto místico de um grande espiritual louco de amor de Deus, esta tradição produz maravilhas: mas nem sempre foi o caso, e a tradição mística cristã posterior, a despeito de toda sua riqueza afetiva, não recuperaram jamais a solidez dos pressupostos dogmáticos da grande tradição anterior. Urs von Balthasar (Theologie une Heiligkeit pp. 204-5) mostrou como esta separação - a dogmática de um lado, a ascese e a mística de outro- afetou a vida e a obra de grandes mestres como Inácio de Loyola, João da Cruz e Francisco de Sales. Tal abordagem além disto, se presta muito facilmente ao perigo de considerar como "experiência de Deus" estados psicológicos que podem ser tanto repercussões no nosso psiquismo de uma real união com Deus quanto de simples estados psicológicos. Este perigo não é nem um pouco irreal em nossos dias.
Esta cisão entre teologia e mística não foi a conseqüência da "modernidade" como se tem dito por aí. Foi antes a modernidade que a sofreu na sua evolução; e as loucas ambições do pensamento racional nestes momentos de entusiasmo mais ingênuos operaram as conseqüências desta cisão. Fala-se muito hoje em pós-modernidade; mas antes de enterrar muito rapidamente a modernidade para abraçar o que se diz como pós-modernidade, seria preciso dizer qual pós-modernidade que desejamos. Os teóricos mais vociferantes da pós-modernidade são em geral os que têm uma postura "descontrutivista", que rejeita todo lugar à metafísica, ao pensamento forte, e a todo dogma ou verdade objetiva, não deixando nenhum lugar nem à contemplação... nem à vida monástica.