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domingo, 16 de outubro de 2011

Vida de São Bento - Portal COT


Por ocasião da dedicação do Mosteiro de Monte Cassino em 1964, após sua reconstrução, o Papa Paulo VI proclamou São Bento (ca. 480 - ca. 547) patrono principal de toda a Europa. O título, apesar de um pouco exagerado, é verdadeiro sob vários aspectos. São Bento não construiu o Mosteiro de Monte Cassino com a intenção de salvar a cultura, mas, de fato, os mosteiros que depois seguiram a sua Regra foram lugares onde o conhecimento e os manuscritos foram preservados. Por mais de seis séculos, a cultura cristã da Europa medieval praticamente coincidiu com os centros monásticos de piedade e estudo.
São Bento não foi o fundador do monaquismo cristão*, tendo vivido quase três séculos depois do seu surgimento no Egito, na Palestina e na Ásia Menor. Tornou-se monge ainda jovem e desde então aprendeu a tradição pelo contato com outros monges e lendo a literatura monástica. Foi atraído pelo movimento monástico, mas acabou dando-lhe novos e frutuosos rumos. Isto fica evidente na Regra que escreveu para os mosteiros, e que ainda hoje é usada em inúmeros mosteiros e conventos no mundo inteiro.
A tradição diz que São Bento viveu entre 480 e 547, embora não se possa afirmar com certeza que essas datas sejam precisas do ponto de vista histórico. Seu biógrafo, São Gregório Magno, papa de 590 a 604, não registra as datas de seu nascimento e morte, mas se refere a uma Regra escrita por Bento. Há discussões com relação à datação da Regra, mas parece haver consenso de que tenha sido escrita na primeira metade do século VI. São Gregório escreveu sobre São Bento no seu Segundo Livro dos Diálogos, mas seu relato da vida e dos milagres de Bento não pode ser encarado como uma biografia no sentido moderno do termo. A intenção de Gregório ao escrever a vida de Bento foi a de edificar e inspirar, não a de compilar os detalhes de sua vida quotidiana. Buscava mostrar que os santos de Deus, em particular São Bento, ainda operavam na Igreja Cristã, apesar de todo o caos político e religioso da época.
Por outro lado, seria falso afirmar que Gregório nada apresenta em seu texto sobre a vida e a obra de Bento. De acordo com os Diálogos de São Gregório, Bento (e sua irmã gêmea, Escolástica) nasceu em Núrsia, um vilarejo no alto das montanhas, a nordeste de Roma. Seus pais o mandaram para Roma a fim de estudar, mas ele achou a vida da cidade eterna degenerada demais para o seu gosto. Por conseguinte, fugiu para um lugar a sudeste de Roma, chamado Subiaco, onde morou como eremita por três anos, com o apoio do monge Romano. Foi então descoberto por um grupo de monges que o incitaram a se tornar o seu líder espiritual. Mas o seu regime logo se tornou excessivo para os monges indolentes, que planejaram então envenená-lo. Gregório narra como Bento escapou ao abençoar o cálice contendo o vinho envenenado, que se quebrou em inúmeros pedaços. Depois disso, preferiu se afastar dos monges indisciplinados. São Bento estabeleceu doze mosteiros com doze monges cada, na região ao sul de Roma. Mais tarde, talvez em 529, mudou-se para Monte Cassino, 130 km a sudeste de Roma; ali destruiu o templo pagão dedicado a Apolo e construiu seu primeiro mosteiro. Também ali escreveu sua Regra para o Mosteiro do Monte Cassino, já prevendo que ela poderia ser usada em outros lugares. Os 38 pequenos capítulos do Segundo Livro dos Diálogos contêm vários episódios da vida e dos milagres de São Bento. Algumas passagens dizem que podia ler o pensamento das pessoas, outras mencionam feitos miraculosos, como quando fez brotar água de uma rocha e um discípulo andar sobre a água; outra passagem menciona um jarro de óleo que nunca se esgotava.
As estórias de milagres fazem eco aos acontecimentos da vida de certos profetas de Israel, e também da vida de Jesus. A mensagem é clara: a santidade de Bento é como a dos santos e profetas de antigamente, e Deus não abandonou o seu povo, mas continua a abençoá-lo com homens santos. Bento deve ser encarado como um líder monástico, não como um erudito. Provavelmente conhecia bem o latim, o que lhe dava acesso aos escritos de Cassiano e outros, incluindo regras e sentenças. Sua Regra é o único texto conhecido de Bento, mas é suficiente para manifestar a habilidade genial com que cristalizou o melhor da tradição monástica e trouxe-a para o Ocidente. Gregório apresenta Bento como modelo de santo que foge da tentação para levar uma vida de atenção à presença de Deus. Através de um esquema equilibrado de vida e oração, Bento chegou ao ponto de se aproximar da glória de Deus. Gregório narra a visão que Bento teve quando sua vida chegava ao fim: "De súbito, na calada da noite, olhou para cima e viu uma luz que se difundia do alto e dissipava as trevas da noite, brilhando com tal esplendor que, apesar de raiar nas trevas, superava o dia em claridade. Nesta visão, seguiu-se uma coisa admirável, pois, como depois ele mesmo contou, também o mundo inteiro lhe apareceu ante os olhos, como que concentrado num só raio de sol" (cap. 34). São Bento, o monge por excelência, levou um tipo de vida monástica que o conduziu à visão de Deus.

Oração de São Bento

(pedidos de proteção contra o inimigo)
A Cruz sagrada seja minha Luz
Não seja o Dragão meu guia
Retira-te Satanas
Nunca me aconse-lhes coisas vãs
É mal o que tu me ofereces
Bebe tu mesmo do teu veneno
Rogai por nós bem aventurado São Bento
Para que sejamos dignos das promessas de Cristo

Em Latim

Crux Sacra Sit Mihi Lux
Non Draco Sit Mihi Dux
Vade Retro Sátana
Nunquam Suade Mihi Vana
Sunt Mala Quae Libas
Ipse Venena Bibas
*Observação: São Bento é considerado o pai do monaquismo ocidental.

domingo, 4 de setembro de 2011

Caminho dos Ascetas - Iniciação à Vida Espiritual - parte 5

É preciso extirpar o desejo do gozo

A Escritura diz que apenas um pequeno número encontra o caminho estreito que conduz à vida; e que nos devemos esforçar para entrar no caminho estreito, "... pois eu vos digo que muitos procurarão entrar e não conseguirão" (Lc 13:24). Devemos procurar a causa exatamente na repugnância que temos em nos perseguir. Dominamos, talvez, os vícios mais graves e mais perigosos, mas paramos por aí. Deixamos as nossas pequenas fantasias se desenvolverem livremente, como bem entenderem. Não cometemos roubos nem trapaças; porém, os mexericos são a nossa delícia. Não nos embriagamos, mas abusamos do chá ou do café. Nosso coração continua repleto de desejos. As raízes não foram extirpadas, e nós vagamos ao acaso na floresta virgem que cresceu no solo fértil da ternura que sentimos por nós mesmos. Ataca de frente essa ternura para contigo, pois é ela a raiz de todos os males de que sofres. Se não tivesses tanta piedade por ti mesmo, perceberias imediatamente que és tu que fazes a tua própria infelicidade, porque te recusas a compreender que os males que te acontecem são, na realidade, uma coisa boa. A ternura por ti mesmo te escurece a vista. Só tens compaixão por ti; conseqüência: teu horizonte é muito estreito. Teu amor é prisioneiro de ti mesmo. Liberta-o, e já não serás infeliz. Renuncia às tuas nocivas fraquezas e à tua insaciável sede de bem-estar; ataca-as por todos os lados! Condena à morte o teu apetite de prazer. Não lhe deixes ar para respirar. Sê rigoroso para contigo; recusa a teu "eu" carnal as migalhas de prazer que ele reclama obstinadamente. Pois o hábito se fortifica pela repetição dos atos; morre, porém, se não for alimentado. Mas, toma muito cuidado para não fechar ao mal a porta principal, deixando entreaberta a porta dos fundos, por onde ele poderá esgueirar-se, com habilidade, sob outra forma. De que serviria, por exemplo, dormir no chão, se, ao mesmo tempo, procurasses a satisfação em banhos quentes? Para que deixar de fumar, se dás livre curso ao desejo de tagarelar? Qual o benefício de não tagarelar, se lês romances cativantes? E de que servirá abster-te de ler, se deixas em liberdade a imaginação, e te deixas embalar por doces devaneios? Tudo isso não passa de diferentes formas de uma só e única realidade: a insaciável sede de satisfazer tua necessidade de gozo.
Precisas decidir-te a extirpar o simples desejo de possuir objetos agradáveis, de experimentar um sentimento de bem-estar, de ter conforto. Deves aprender a amar as contrariedades, a pobreza, o sofrimento, as privações. Deves aprender a seguir os preceitos do Senhor: não dizer coisas inúteis, não se vestir com excessivo
aprimoramento, obedecer sempre à autoridade, não olhar uma mulher com concupiscência, não ter acessos de cólera, etc... Todos esses preceitos nos foram dados para que os pratiquemos; não para que nos comportemos como se eles não existissem. Senão, eles não nos teriam sido impostos pelo Deus de misericórdia. "... Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo" (Mt 16:24): o Senhor confia, assim, na vontade de cada um ("se alguém quer") e ao esforço pessoal ("negue-se a si mesmo").


quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Caminhos dos Ascetas - Iniciação à Vida Espiritual - parte 4

A renúncia de si mesmo e a purificação do coração


Desarmado, fraco e desprovido de poderes, empreende a mais difícil das tarefas: vencer teus próprios desejos egoístas. É exatamente isso a "perseguição de si mesmo" de que depende, finalmente, o resultado do teu combate; pois, enquanto a tua vontade egoísta dominar, não poderás dizer ao Senhor com coração puro: "Que seja feita a tua vontade." Se não te podes desfazer da tua própria grandeza, não poderás abrir-te à verdadeira grandeza. Se te agarras à própria liberdade, não poderás tomar parte na verdadeira liberdade, que é o reino de uma única vontade. O mais profundo segredo dos santos é este: não procures a liberdade, e a liberdade te será dada. A terra não produzirá senão cardos e espinhos, diz a Escritura. É com o suor do seu rosto, com muito sofrimento, que o homem deve cultivá-la. Esta terra é o homem mesmo, sua própria natureza. Os santos Padres aconselham a começar pelas coisas pequenas; pois, como diz Santo Efrém, o Sírio, como poderias apagar um grande incêndio antes de aprender a abafar um fogo de pequenas proporções? Se queres ser capaz de resistir a uma paixão violenta — dizem os santos Padres — abate os pequenos desejos. Não creias que se possa separá-los uns dos outros: eles se prendem como os elos de uma corrente, como as malhas de uma rede. Por isso, de nada serve atacar os vícios principais e os maus hábitos que te opõem forte resistência, se ao mesmo tempo não te esforças por vencer as pequenas fraquezas "inocentes": pequenas gulas, tentação de falar, curiosidade, hábito de se meter nos assuntos dos outros. Todos os nossos desejos, de fato, grandes ou pequenos, têm o mesmo fundamento: o nosso hábito constante de satisfazer apenas a nossa própria vontade. É, portanto, a vontade própria que deve ser condenada à morte. Desde o pecado original, nossa vontade está exclusivamente a serviço do nosso próprio "eu." Assim, o objetivo do combate é a morte da vontade própria. É preciso começar sem demora, e prosseguir na luta sem descanso. Tens vontade de fazer uma pergunta? Não a faça! Tens muita vontade de tomar duas xícaras de café? Toma apenas uma! Tens a tentação de olhar pela janela? Não olhes! Tens desejo de visitar alguém? Fica em casa. Isso é perseguir a si mesmo. Através desse meio, com a ajuda de Deus, faz-se calar a voz ruidosa da própria vontade. Talvez te perguntes se isso é realmente necessário. Os santos Padres respondem com outra pergunta: Crês mesmo que seja possível encher um vaso com água pura, sem despejar primeiro a água suja que nele se encontra? Ou gostarias de receber um hóspede amado, num quarto abarrotado com toda espécie de velharias e de objetos postos de lado? Não. "Todo o que tem esperança de ver o Senhor tal como ele é, purifica-se a si mesmo," diz o apóstolo São João (1Jo 3:3). Purifiquemos, pois, o nosso coração! Joguemos fora todas as velharias empoeiradas que aí se acumulam; lavemos o chão com escova, limpemos os vidros e abramos as janelas, para que o ar e a luz entrem no quarto, onde queremos fazer um santuário para o Senhor. Troquemos enfim de roupa, para que o nosso velho cheiro de bolor já não fique em nós, e para que não sejamos lançados fora (cf. Lc 13:28). Eis o nosso labor de cada dia e de cada instante. Fazendo isso, estaremos apenas cumprindo o que o Senhor nos ordenou por seu santo apóstolo Tiago: "... santificai os vossos corações" (Tg 4:8). Pede-nos o apóstolo Paulo: "... purifiquemo-nos de toda mancha da carne e do espírito" (2Cor 7:1). Diz o Cristo: "Com efeito, é de dentro do coração dos homens que saem as intenções malignas: prostituições, roubos, assassínios, adultérios, ambições desmedidas, maldades, malícia, devassidão, inveja, difamação, arrogância, insensatez. Todas estas coisas más saem de dentro do homem, e são elas que o tornam impuro" (Mc 7:21-23). Por isso, ele exorta assim os fariseus: "... limpa primeiro o interior do copo para que também o exterior fique limpo!" (Mt 23:26). Pondo em prática esse preceito de começar pelo interior, devemos ter presente em nosso espírito que não é, de modo algum, por nós mesmos, que purificamos o nosso coração. Não é para a satisfação pessoal que limpamos e polimos o quarto de hóspedes, mas sim para que o nosso hóspede se sinta bem. Nós nos perguntamos: "Será que vai achá-lo a seu gosto? Irá ficar?" Todo o nosso pensamento é para ele. Depois nos retiramos, ficamos em segundo plano, sem esperar resposta. Como explica Nicétas Stéthatos, existem para o homem três estados: o homem carnal, que quer viver para o próprio prazer, mesmo em detrimento dos outros; o homem natural, que deseja agradar ao mesmo tempo a si mesmo e aos outros; o homem espiritual, que quer agradar só a Deus ainda que seja em detrimento de si próprio. O primeiro está abaixo da natureza; o segundo está conforme à natureza; o terceiro está acima da natureza: é a vida no Cristo. O homem espiritual pensa espiritualmente; sua esperança é ouvir um dia os anjos se alegrarem "... por um só pecador que se converte" (Lc 15:10), um pecador que não é outro senão ele mesmo. Que sejam esses os teus sentimentos; trabalha animado por essa esperança, pois o Senhor nos deu este preceito: "... deveis ser perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito" (Mt 5:48), e "Buscai, em primeiro lugar, o Reino de Deus e a sua justiça" (Mt 6:33). Não te concedas repouso algum, nenhuma trégua, até que tenhas condenado à morte essa parte de ti mesmo que provém da natureza carnal. Toma a resolução de descobrir em ti toda manifestação do homem animal, e de persegui-lo implacavelmente. "Pois a carne tem aspirações contrárias ao espírito e o espírito contrárias à carne" (Gl 5:17). Mas se temes tornar-te justo a teus próprios olhos, trabalhando para a tua salvação; se temes ser vencido pelo orgulho espiritual, examina-te a ti mesmo, e diz que aquele que teme tornar-se justo a seus próprios olhos, é cego. Porque não vê que ele é justo a seus próprios olhos.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

A renúncia de si mesmo e a purificação do coração

Desarmado, fraco e desprovido de poderes, empreende a mais difícil das tarefas: vencer teus próprios desejos egoístas. É exatamente isso a "perseguição de si mesmo" de que depende, finalmente, o resultado do teu combate; pois, enquanto a tua vontade egoísta dominar, não poderás dizer ao Senhor com coração puro: "Que seja feita a tua vontade." Se não te podes desfazer da tua própria grandeza, não poderás abrir-te à verdadeira grandeza. Se te agarras à própria liberdade, não poderás tomar parte na verdadeira liberdade, que é o reino de uma única vontade. O mais profundo segredo dos santos é este: não procures a liberdade, e a liberdade te será dada. A terra não produzirá senão cardos e espinhos, diz a Escritura. É com o suor do seu rosto, com muito sofrimento, que o homem deve cultivá-la. Esta terra é o homem mesmo, sua própria natureza. Os santos Padres aconselham a começar pelas coisas pequenas; pois, como diz Santo Efrém, o Sírio, como poderias apagar um grande incêndio antes de aprender a abafar um fogo de pequenas proporções? Se queres ser capaz de resistir a uma paixão violenta — dizem os santos Padres — abate os pequenos desejos. Não creias que se possa separá-los uns dos outros: eles se prendem como os elos de uma corrente, como as malhas de uma rede. Por isso, de nada serve atacar os vícios principais e os maus hábitos que te opõem forte resistência, se ao mesmo tempo não te esforças por vencer as pequenas fraquezas "inocentes": pequenas gulas, tentação de falar, curiosidade, hábito de se meter nos assuntos dos outros. Todos os nossos desejos, de fato, grandes ou pequenos, têm o mesmo fundamento: o nosso hábito constante de satisfazer apenas a nossa própria vontade. É, portanto, a vontade própria que deve ser condenada à morte. Desde o pecado original, nossa vontade está exclusivamente a serviço do nosso próprio "eu." Assim, o objetivo do combate é a morte da vontade própria. É preciso começar sem demora, e prosseguir na luta sem descanso. Tens vontade de fazer uma pergunta? Não a faça! Tens muita vontade de tomar duas xícaras de café? Toma apenas uma! Tens a tentação de olhar pela janela? Não olhes! Tens desejo de visitar alguém? Fica em casa. Isso é perseguir a si mesmo. Através desse meio, com a ajuda de Deus, faz-se calar a voz ruidosa da própria vontade. Talvez te perguntes se isso é realmente necessário. Os santos Padres respondem com outra pergunta: Crês mesmo que seja possível encher um vaso com água pura, sem despejar primeiro a água suja que nele se encontra? Ou gostarias de receber um hóspede amado, num quarto abarrotado com toda espécie de velharias e de objetos postos de lado? Não. "Todo o que tem esperança de ver o Senhor tal como ele é, purifica-se a si mesmo," diz o apóstolo São João (1Jo 3:3). Purifiquemos, pois, o nosso coração! Joguemos fora todas as velharias empoeiradas que aí se acumulam; lavemos o chão com escova, limpemos os vidros e abramos as janelas, para que o ar e a luz entrem no quarto, onde queremos fazer um santuário para o Senhor. Troquemos enfim de roupa, para que o nosso velho cheiro de bolor já não fique em nós, e para que não sejamos lançados fora (cf. Lc 13:28). Eis o nosso labor de cada dia e de cada instante. Fazendo isso, estaremos apenas cumprindo o que o Senhor nos ordenou por seu santo apóstolo Tiago: "... santificai os vossos corações" (Tg 4:8). Pede-nos o apóstolo Paulo: "... purifiquemo-nos de toda mancha da carne e do espírito" (2Cor 7:1). Diz o Cristo: "Com efeito, é de dentro do coração dos homens que saem as intenções malignas: prostituições, roubos, assassínios, adultérios, ambições desmedidas, maldades, malícia, devassidão, inveja, difamação, arrogância, insensatez. Todas estas coisas más saem de dentro do homem, e são elas que o tornam impuro" (Mc 7:21-23). Por isso, ele exorta assim os fariseus: "... limpa primeiro o interior do copo para que também o exterior fique limpo!" (Mt 23:26). Pondo em prática esse preceito de começar pelo interior, devemos ter presente em nosso espírito que não é, de modo algum, por nós mesmos, que purificamos o nosso coração. Não é para a satisfação pessoal que limpamos e polimos o quarto de hóspedes, mas sim para que o nosso hóspede se sinta bem. Nós nos perguntamos: "Será que vai achá-lo a seu gosto? Irá ficar?" Todo o nosso pensamento é para ele. Depois nos retiramos, ficamos em segundo plano, sem esperar resposta. Como explica Nicétas Stéthatos, existem para o homem três estados: o homem carnal, que quer viver para o próprio prazer, mesmo em detrimento dos outros; o homem natural, que deseja agradar ao mesmo tempo a si mesmo e aos outros; o homem espiritual, que quer agradar só a Deus ainda que seja em detrimento de si próprio. O primeiro está abaixo da natureza; o segundo está conforme à natureza; o terceiro está acima da natureza: é a vida no Cristo. O homem espiritual pensa espiritualmente; sua esperança é ouvir um dia os anjos se alegrarem "... por um só pecador que se converte" (Lc 15:10), um pecador que não é outro senão ele mesmo. Que sejam esses os teus sentimentos; trabalha animado por essa esperança, pois o Senhor nos deu este preceito: "... deveis ser perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito" (Mt 5:48), e "Buscai, em primeiro lugar, o Reino de Deus e a sua justiça" (Mt 6:33). Não te concedas repouso algum, nenhuma trégua, até que tenhas condenado à morte essa parte de ti mesmo que provém da natureza carnal. Toma a resolução de descobrir em ti toda manifestação do homem animal, e de persegui-lo implacavelmente. "Pois a carne tem aspirações contrárias ao espírito e o espírito contrárias à carne" (Gl 5:17). Mas se temes tornar-te justo a teus próprios olhos, trabalhando para a tua salvação; se temes ser vencido pelo orgulho espiritual, examina-te a ti mesmo, e diz que aquele que teme tornar-se justo a seus próprios olhos, é cego. Porque não vê que ele é justo a seus próprios olhos.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Caminho dos Ascetas Iniciação à vida espiritual - parte 3


A horta do coração

A vida nova, que acaba de começar, tem sido muitas vezes comparada à de um agricultor. O solo que ele cultiva é um dom de Deus, como as sementes, o calor do sol, a chuva e a força que faz crescer os legumes. Mas o trabalho lhe foi confiado. Se o agricultor quiser obter uma colheita abundante, deve trabalhar de sol a sol, escavar, afofar a terra, regar, podar, pois suas culturas são ameaçadas por muitos perigos que comprometem a colheita. Deve trabalhar sem descanso, estar sempre alerta, sempre preparado para o que der e vier, sempre pronto a intervir. E apesar de tudo isso, afinal de contas, a colheita depende inteiramente do tempo e dos elementos, isto é, de Deus. A horta que nos dispusemos a cultivar, e pela qual devemos velar, é o nosso próprio coração; a colheita é a vida eterna. Ela é eterna porque não é medida pelo tempo e pelo espaço; não está ligada às circunstâncias exteriores. É a vida verdadeira, uma vida de liberdade, de amor, de misericórdia e de luz. Não tem nenhum limite, e por isso é eterna. É uma vida espiritual, que transcorre numa esfera espiritual. É uma nova dimensão da existência. Começa neste mundo e não tem fim. Nenhuma autoridade terrestre tem poder sobre ela, e a descobrimos no fundo do coração. "Persegue-te a ti mesmo, diz santo Isaac, o Sírio, e teu inimigo será derrotado só pela tua aproximação. Faze a paz contigo, e contigo farão a paz o céu e a terra. Esforça-te para entrar na tua cela interior, e verás a morada celeste, pois elas são a mesma e única coisa: penetrando em uma, contemplarás também a outra. A escada do Reino está em ti, escondida no teu coração. Se te desfizeres do fardo de teus pecados, descobrirás em ti o atalho que tornará possível a tua ascensão." A morada celeste, de que fala o santo, é um outro nome da vida eterna. Também é chamada Reino dos céus, Reino de Deus, ou simplesmente Cristo. Viver no Cristo, é viver na vida eterna.

Um combate silencioso e invisível

Agora, que sabemos onde se deve travar o combate que acabamos de começar, e o que está em jogo, resta-nos compreender por que o chamam "combate invisível." É que ele se desenvolve inteiro em nosso coração, em silêncio, bem no fundo de nós mesmos. Esse particular também é importante, e os santos Padres insistem sobre ele com veemência: "Conserva os lábios bem fechados sobre o teu segredo!" Se abrirmos a porta durante um banho de vapor, o calor vai-se embora, e o tratamento perde a eficácia. Assim pois, não fales a ninguém da tua recente decisão. Não digas nada da tua nova vida, nem das experiências que fazes, ou daquilo com que, um dia, esperas ser favorecido. Deves tratar disso só entre Deus e ti, exclusivamente. A única exceção deve ser teu pai espiritual. O silêncio é necessário, porque falar com facilidade de seus próprios assuntos só pode incitar à preocupação consigo mesmo, além de alimentar a confiança em si. Ora, são tendências que devem ser reprimidas, antes de tudo. Graças ao silêncio, cresce a nossa confiança naquele que vê o que está escondido; graças ao silêncio, falamos àquele que ouve sem necessidade de palavras. Procura apenas dirigir-te a ele; é nele que deve estar a tua confiança. Estás ancorado na eternidade, e na eternidade, toda palavra emudece. De agora em diante, deverás pensar que tudo o que te acontece, importante ou não, te é enviado por Deus, para ajudar-te no teu combate Só ele sabe o que te é necessário, e o que te falta no momento presente: adversidade ou prosperidade, tentação ou queda. Nada acontece por acaso; não há nenhum acontecimento do qual nada tenhas que aprender. Deves compreender bem isso, desde já, pois é assim que aumentarás a tua confiança no Senhor, que escolhestes seguir. Os santos nos dão ainda um outro conselho para a caminhada: considera-te uma criança que apenas começa a falar, e que esteja dando os primeiros passos. Toda a tua sabedoria segundo este mundo, e todo o teu conhecimento, não têm utilidade para o combate que te espera; tampouco te servem a situação social e os bens. Tudo o que se possui, e que não é empregado no serviço do Senhor, é um fardo; um conhecimento do qual o coração não partilhe é astéril e, logo, nocivo, uma vez que é pretensioso. Chamam-no "ciência simples," porque é desprovido de calor e não alimenta o amor. Deves, pois, abandonar toda a tua ciência, e tornar-te ignorante, para seres sábio. Deves tornar- te pobre para seres rico, e fraco para seres forte.



sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Caminho dos Ascetas Iniciação à vida espiritual - parte 2

A insuficiência das forças humanas

Dizem os santos Padres, todos a uma só voz: "A primeira coisa que deves inculcar no espírito é que nunca, de modo algum, te deves apoiar em ti mesmo. O combate que vais enfrentar é extraordinariamente árduo, e as forças humanas, sozinhas, são de todo insuficientes para conduzi-lo. Se confias em ti mesmo, serás derrubado de imediato, e perderás toda a vontade de continuar a luta. Só Deus te pode dar a vitória, segundo o teu desejo." Para muita gente, a decisão de não colocar em si mesmo a confiança é um sério obstáculo, que os impede de começar uma vez por todas. É necessário perseverar, sob pena de abandonar qualquer esperança de ir mais longe. Com efeito, como poderá um homem receber conselhos, formação e ajuda, se pensa que conhece tudo, pode tudo, e não tem necessidade alguma de conselhos? Através de semelhante muro de suficiência, nenhum raio de luz consegue passar. "Ai dos que são sábios a seus próprios olhos, e inteligentes na sua própria opinião!" (Is 5:21); e São Paulo nos dá este conselho: "... não vos deis ares de sábios" (Rm 12:16). O reino dos céus foi revelado aos pequeninos, mas continua oculto aos sábios e aos doutores (cf. Mt 11:25). Devemos, portanto, nos despojar dessa confiança imoderada que temos em nós mesmos. Muitas vezes, ela está arraigada em nós tão profundamente, que já nem percebemos o domínio que exerce sobre nosso coração. O nosso egoísmo, a preocupação com a nossa pessoa, o amor próprio, são precisamente as causas de todas nossas dificuldades, de nossa falta de liberdade interior na provação, de nossas contrariedades, de nossos tormentos da alma e do corpo. Olha um pouco para ti mesmo, e verás a que ponto estás aprisionado pelo desejo de dar prazer ao teu "eu," e somente a ele. Tua liberdade está presa pelos laços estreitos do amor por ti mesmo; assim, és balançado ao acaso, como um cadáver inconsciente, da manhã à noite. "Agora, estou com vontade de beber," "agora, estou com vontade de sair," "agora estou com vontade de ler o jornal." A cada instante, teus próprios desejos te conduzem como por meio de uma rédea; e, se algum obstáculo se coloca no caminho, imediatamente perdes a calma, sob o efeito da contrariedade, da impaciência ou da cólera. Se sondares as profundezas de tua consciência, descobrirás as mesmas coisas. O sentimento de desagrado que experimentas, quando alguém te contradiz, possibilita facilmente essa verificação. Vivemos, assim, como escravos. Mas "... onde se acha o Espírito do Senhor, aí está a liberdade" (2Cor 3:17). Que proveito poderás encontrar em gravitar assim, constantemente, em torno do teu "eu"? Não nos ordenou o Senhor que amássemos ao próximo como a nós mesmos, e que amássemos a Deus acima de todas as coisas? Mas, nós o fazemos? Não estamos, ao contrário, sempre ocupados em pensar no nosso bem-estar? Convence-te, pois, de que nada de bom pode vir de ti próprio. E se algum pensamento desinteressado despertar em ti, podes estar certo de que não vem de ti, mas que deriva da Fonte da Bondade, e que foi depositado em ti; é um dom daquele que dá a vida. Do mesmo modo, o poder de fazer passar ao ato esse bom pensamento, não vem de ti, mas te é concedido pela Santíssima Trindade.

sábado, 30 de julho de 2011

Caminho dos Ascetas Iniciação à vida espiritual - parte 1

Decisão inicial e perseverança

Se queres salvar tua alma e conseguir a vida eterna, sacode o teu torpor, faz o sinal da cruz e diz: "Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém." Não se obtém a fé pela reflexão, mas pela ação. Não são as palavras e a especulação que nos ensinam quem é Deus, mas a experiência. Para deixar entrar o ar fresco, é preciso abrir a janela; para bronzear a pele, é preciso expor-se ao sol. Para adquirir a fé, é a mesma coisa; como dizem os santos Padres, não se chega ao objetivo, permanecendo confortavelmente sentado, esperando. Imitemos o filho pródigo: "Partiu, então, e foi ter com o pai" (Lc 15:20).
Qualquer que seja o peso e o número de cadeias que te acorrentam à terra, nunca é tarde demais. Não é sem motivo que está escrito que Abraão tinha setenta e cinco anos quando partiu; e os operários da undécima hora receberam o mesmo salário que os que trabalharam desde a manhã. E também, nunca é excessivamente cedo. Nunca é cedo demais para apagar um incêndio na floresta. Gostarias de ver tua alma devastada e queimada? No batismo, recebeste a ordem de te lançares num combate invisível contra os inimigos da tua alma. Põe mãos à obra. Há bastante tempo, usas de subterfúgios. Mergulhado na negligência e na preguiça, desperdiçastes um tempo precioso. Só te resta recomeçar do princípio, porque lamentavelmente deixastes que se empanasse a pureza que recebestes no batismo. Começa, pois, a trabalhar desde já, sem demora. Não adies a tua decisão para hoje à noite, para amanhã, para mais tarde, "quando eu tiver terminado o que preciso fazer agora." Um atraso pode ser fatal. Não; é agora, no mesmo instante de tomar a decisão, que deves mostrar pelos teus atos, que te despedistes do teu velho "eu" e que acabas de começar uma vida nova, à procura de um novo objetivo, seguindo novos caminhos. Levanta-te, pois, corajosamente, e diz: "Senhor, concedei-me que comece agora. Ajudai-me!" Porque, acima de tudo, tens necessidade da ajuda de Deus. Persevera em tua decisão, e não olhes para trás. Que o exemplo da mulher de Ló te sirva de lição: ela se transformou em coluna de sal, por ter olhado para trás (cf. Gn 19:26). Abandonastes o homem velho: não retomes o que é desprezível. Como Abraão, ouviste a voz do Senhor que te disse: "Deixa teu país, tua parentela e a casa de teu pai, para o país que te mostrarei" (Gn 12:1). De agora em diante, é nesse país que se deve concentrar toda a tua atenção.