Lembro-me como se fosse hoje. Era o ano de 1986. Na pequena sala de tacos escuros da primeira casa comunitária, o Moysés, com o tradicional bermudão frouxo que os rapazes usavam naquela época, nos falava sobre o seguimento de Jesus de uma forma nova e surpreendente. Lembro-me de ter pensado: “Mas como é que ele conseguiu perceber tudo isso?” Era a graça especial dos primeiros tempos, tempos de fundação, tempo que vivemos ainda hoje e que viveremos enquanto o fundador e a co-fundadora estiverem vivos. Sim, vivemos tempos de graça. Somos bem-aventurados por vivermos este tempo na Igreja e na vocação.
O assunto do ensino daquela manhã quando nos sentávamos no chão por falta de cadeiras – e não éramos mais que cinco – era o seguimento de Jesus. O texto, Lc 14, 25-35:
“ Muito povo acompanhava Jesus. Voltando-se, disse-lhes: ‘Se alguém vem a mim, e não odeia seu pai, sua mãe,sua mulher,seus filhos, seus irmãos, suas irmãs, sim, até a sua própria vida, não pode ser meu discípulo. E quem não carrega a sua cruz e me segue, não pode ser meu discípulo. Quem de vós querendo fazer uma construção, antes não se senta para calcular os gastos que são necessários, afim de ver se tem com que acabá-la? Para que,depois que tiver lançado os alicerces, e não puder acabá-la, todos os que o virem não comecem a zombar dele,dizendo: Este homem principiou a edificar, mas não pôde terminar. Ou qual é orei que, estando para guerrear com outro rei, não se senta primeiro para considerar se com dez mil homens poderá enfrentar o que vem contra ele com vinte mil? De outra maneira, quando o outro ainda está longe, envia-lhe embaixadores para tratar da paz.Assim, pois, qualquer um de vós que não renuncia tudo o que possui não pode ser meu discípulo.
O sal é uma coisa boa; mas se ele perder o sabor, com que o recuperará? Não servirá nem para a terra nem para o adubo, mas lançar-se-á fora. O que tem ouvidos para ouvir, ouça!”
Naquela época, a radicalidade evangélica era – como será sempre em nossa vocação – essencial. Além de essencial, porém, era viva, muito viva. Viva e vivenciada sem descuido, à risca. Significava, antes de qualquer coisa, uma verdade evidente, embora tantas vezes descurada:
Seguir Jesus é deixar tudo e todos. Deixar todo o resto.
Deixar todos os outros que não Ele.
Muito povo acompanhava Jesus. Voltando-se, disse-lhes: “Se alguém vem a mim e não odeia seu pai, sua mãe, sua mulher, seus filhos, seus irmãos, suas irmãs e até a sua própria vida, não pode ser meu discípulo.
Como isso era vivo para nós, os primeiros! Éramos os primeiros a sermos chamados a, literalmente, deixar para trás pai, mãe, mulher, marido, filhos, irmãos, irmãs e a própria vida. Ninguém antes de nós havia deixado tanta coisa para uma aventura completamente inesperada.
Hoje, sabemos muito bem o que é uma Comunidade Nova. João Paulo II falou desta realidade no Pentecostes de 98 em plena Praça de São Pedro e em seus documentos. A Igreja, hoje, reconhece várias comunidades novas a nível pontifício e a nossa está em processo de reconhecimento. Nosso fundador é convidado para o Sínodo sobre Eucaristia, para importantes eventos no Pontifício Conselho dos Leigos e para o lançamento do documento papal Deus Charitas Est.
Naquela época, iniciávamos uma aventura rumo ao desconhecido. Não sabíamos para onde estávamos indo, nem se a Igreja nos acolheria. Pelo contrário, por toda parte nos chamavam de loucos e setores da Igreja, alguns muito ligados a nós, desencorajavam nossa opção e não nos poupavam de perseguições e falatórios.
Deixávamos tudo por uma incerteza. Trocávamos nossos queridos por uma incógnita. Abandonávamos nossos estudos e trabalhos por uma aventura. Era isso, sim, mas aos olhos dos homens. Aos olhos de Deus – e, creia, naquela época estávamos cheios de Deus, cheios de entusiasmo, dispostos a dar a vida por Jesus! – aos Seus olhos e aos nossos, deixávamos todos e tudo por... Jesus, o Ressuscitado, o Cristo Vivo que havíamos experimentado no Batismo no Espírito Santo e que, através do Moysés nos propunha um seguimento radical, ainda que não soubéssemos para onde íamos ou se receberíamos alguma coisa em troca do que havíamos deixado. Era a fé a nos dar a certeza do incerto; a esperança a nos dar a certeza de que Deus tinha planos para nós, a caridade a queimar nosso coração de amor esponsal.
A exigência de Deus era clara: era preciso deixar tudo. A pregação do Moysés, muito explícita: a vocação Shalom exigia o deixar tudo, supunha o seguimento radical de Jesus Cristo. E isso ele pregava veementemente ungido, na pequena sala da República do Líbano para os seus cinco primeiros discípulos.
E quem não carrega a sua cruz e me segue, não pode ser meu discípulo.
Como sempre, estava presente a eterna discussão acerca do que seria esta cruz. Em sua pregação, o Moysés deixava claro: era crucificar nossos planos, nossos desejos, nossa vontade, nossas afeições desordenadas, nosso amor a nós mesmos; crucificar tudo o que não fosse Jesus. Carregar tudo isso como uma cruz, renunciando a todo direito pelo privilégio incomparável de ser discípulo de Jesus.
Hoje em dia, de vez em quando me pego a comparar a qualidade do seguimento de Jesus que eu tinha naquela época e que tenho hoje. Que diferença! Hoje, cercada de seguranças, será que ainda é por Jesus que deixo tudo? Será que ainda carrego a cruz de morte de minha carne, desejos, planos, vontade, afeições desordenadas, amor a mim mesma? Cercada de milhares de irmãos pelo mundo inteiro, contando com o aval da Igreja e o reconhecimento da RCC, ainda vivo a radicalidade evangélica que requer absolutamente a prioridade radical de amor a Jesus Cristo deixando tudo e todos para trás?
Hoje, paparicada em meio a palestras, cursos, livros, rádio, tv, ainda mantenho a radicalidade de deixar tudo, absolutamente tudo para ser unicamente de Jesus e para segui-lo radicalmente, isto é, para ser radicalmente igual a ele? Cercada pelas estruturas da Obra e da Comunidade, tendo a identidade do Carisma melhor definida, com os pés nos Estatutos e nas Regras reconhecidas, já sabendo de onde vim e para onde vou, mantenho o mesmo nível de radicalidade, de amor esponsal, de desejo ardente de ser pobre como Jesus, casta como Jesus, obediente como Jesus, Paz como Jesus?
A grande surpresa da pregação do Moysés, entretanto, viria com o texto a seguir. Aliás, foi por este trecho que ele iniciou seu ensino, só depois voltando ao início da passagem. Vejamos:
Quem de vós, querendo fazer uma construção, antes não se senta para calcular os gastos que são necessários a fim de ver se tem com que acabá-la? Para que, depois que tiver lançado os alicerces e não puder acabá-la todos os que o virem não comecem a zombar dele, dizendo: Este homem principiou a edificar, mas não pode terminar. Ou qual é o rei que, estando para guerrear com outro rei, não se senta primeiro para considerar se com dez mil homens poderá enfrentar o que vem contra ele com vinte mil? De outra maneira, quando o outro ainda está longe, envia-lhe embaixadores para tratar da paz.
O Moysés enfatizava bem que as ponderações de que fala o Evangelho, vinham antes de se tomar a decisão. Ou seja, antes de nos aventurarmos no desconhecido de seguir Jesus em uma comunidade, deveríamos pensar bem se estávamos dispostos a construir paredes imponderáveis sobre alicerces invisíveis, sem nenhuma segurança de que elas iriam sustentar-se de pé. Enfatizava, em sua pregação, que ainda que fôssemos reis todo-poderosos, deveríamos estar conscientes de que entrávamos para uma batalha humana e espiritual que não só duraria para sempre - e naquela época era comum citarmos Provérbios Se entrares para o serviço de Deus, prepara tua alma para a provação.
Tínhamos muito em mente que nos metíamos em uma batalha espiritual que duraria enquanto vivermos. O Moysés, por sua vez, deixava claro quem eram os inimigos que iríamos combater: a nós mesmos, nossa carne, nossos desejos, nosso amor próprio, nossos planos, nossas concupiscências, nosso desejo de ser como o mundo, nossa vontade de voltar atrás. Seria uma batalha desigual: dez mil contra vinte mil do inimigo.
“Quem amar a si mesmo”, dizia ele, “mesmo que seja só um pouco, não tem chances de vencer a batalha. Vai ter sempre a tentação de enviar embaixadores ao inimigo para conversações em vistas de uma falsa paz, de uma paz passageira que o inimigo e o mundo podem dar. No entanto, quem decidir não amar a si mesmo acima de Jesus, do mundo e de seus queridos, continuará na batalha, mas encontrará a Paz que é o próprio Jesus e que só ele dá. Cristo é a nossa paz!”, finalizava ele, citando passagem que, na época tínhamos como o texto de nossa vocação, uma vez que o Espírito não nos havia ainda inspirado e explicado Jo 20,19, o que só viria a ser registrado quando da elaboração dos Estatutos.
Hoje, vinte anos depois, é fácil constatar como ele tinha razão e como era profético seu ensinamento. Vemos que aqueles que antes de entrar para a comunidade tomaram a decisão pelo seguimento radical de Jesus Cristo têm nela o alicerce de sua casa e a vitória de sua batalha. Muitos, porém, que entram por fantasia ou com outras motivações, não terminaram de construir a casa ou acabam por contemporizar com o inimigo e com o mundo. Pouco a pouco os projetos pessoais, os desejos não crucificados, a amizade com os valores do mundo corroem seus poucos tijolos e tiram a força de seus soldados.
Uma blusa com ou sem manga, uma comunhão de bens doada ou retida, uma saída à noite para um lugar devido ou indevido, de per si parecem inofensivos. Vistos sob a perspectiva da radicalidade evangélica que nossa vocação exige, porém, tornam-se arma de batalha, argamassa forte que une tijolos sem deixar brechas. Uma simples renúncia a uma cava, à compra de um bem supérfluo, a uma diversão mundana, pode fazer a tremenda diferença entre uma vocação vivida até o final da vida ou abandonada pela metade da caminhada.
Decidir-se a não contemporizar ou, para utilizar a linguagem de São Paulo, não ter amizade com o mundo, com nossos projetos pessoais, com nossa carne, com as concupiscências, é o passo essencial para quem quer viver a vocação Shalom que exige, absolutamente, a radicalidade evangélica. Sem a radicalidade evangélica, sem o seguimento radical de Jesus em sua maneira de viver, em sua pobreza, obediência, castidade não existe a vivência da vocação Shalom. Sem seguir radicalmente a Jesus em sua incansável parresia; em seu tomar a cruz, renunciando, ao tomá-la por amor, a todos os seus direitos de Deus e de homem, não se vive a vocação Shalom.
A grande tentação é contemporizar. Tentar harmonizar o seguimento de Jesus e os projetos pessoais, gostos, desejos, reivindicações de direitos, desobediência velada, pobreza aparente, castidade mitigada. Sim, esta é a grande tentação. Ela começa a aparecer sorrateiramente, disfarçada de boas intenções e se instala em uma vivência morna e mitigada que ameaça a vocação de todos. Tudo o que é morno, tudo o que é mitigado, tudo o que é contemporizado vai de encontro à nossa vocação. Isso o Moysés já havia deixado bem claro ao escrever Obra Nova com sua admoestação aos covardes e sua exortação à radicalidade e à renúncia até o sacrifício dos belos galhos verdes.
Nos inícios, era bem mais fácil enxergar os perigos, contar os dez mil inimigos que ultrapassavam nossas tropas, contabilizar a quantidade de tijolos, medir a resistência dos alicerces. Com o crescimento da comunidade, tudo isso se dilui e nos coloca na contingência da re-escolha da radicalidade absoluta. Como finalizou o Moysés, há vinte anos:
Assim, pois, qualquer um de vós que não renuncia a tudo o que possui não pode ser meu discípulo.
Você não conseguiria ouvi-lo dizer:
“Assim, pois, isto é, desta forma e somente desta forma, não de outra forma, mas desta forma, qualquer um de vós – qualquer um, você ou eu, qualquer um de nós – que não renuncia a tudo, tudo, não a metade, não a uma parte, mas tudo, tudo o que tem, tudo o que é... tudo! Não pode ser discípulo de Jesus. Não tem como segui-lo. Não tem como ser como Ele, que deixou tudo para seguir a vontade do Pai. Não tem como viver a magnífica vocação que Nosso Senhor nos deu! Esta vocação exige, exige a radicalidade evangélica, exige o sacrifício de nós mesmos, de tudo o que somos e temos, exige o seguimento radical de Jesus Cristo Nosso Senhor.
Por isso, pense bem antes para não desistir depois. Conte seus tijolos, verifique sua argamassa, conte suas tropas e jamais, jamais contemporize com o mundo, com a carne, com o mal, com você mesmo! Jamais! Do contrário, o sal perderá o seu sabor, pois:
O sal é uma coisa boa, mas se ele perder o seu sabor, com que o recuperará? Não servirá nem para a terra nem para adubo, mas lançar-se-á fora.
Não percamos nosso sabor. Ele não é nosso. É de Deus. É Deus quem no-lo dá. Não percamos a radicalidade evangélica. Do contrário, nossa vocação não servirá para a nada, nem para nós mesmos, nem para a humanidade e acabaremos, nós mesmos, por lançá-la fora, por desperdiçá-la tristemente.
Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!
Amém. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!”
As palavras podem ser as que nosso fundador usaria atualmente. A memória pode me trair. No entanto, atesto que, há vinte anos, sob os arcos da Maria Tomásia, para a comunidade de Aliança e, anteriormente, na pequena sala da República do Líbano, para a comunidade de Vida, foi isso o que pregou o Moysés sobre Lc 14, 24-35, explicando que era preciso a decisão de tudo deixar antes de aventurar-se, repetindo o que havia escrito em Obra Nova. Sim , foi isso o que ele nos ensinou, afirmando que na vocação Shalom, ou vivíamos a radicalidade evangélica do seguimento de Jesus Cristo, ou não viveríamos a magnífica vocação a que Deus nos chama.